Por Igor Serrano. Foto de capa, legenda: Quinn. Foto/Divulgação: Instagram da Quinn.
“Esporte é superação, amor, vitalidade e refúgio!”. É assim que o futebolista amador, Pedro Pessoa, 39 anos, encara a paixão pela modalidade que pratica. Entusiasmado, nos diz que não foi ele quem escolheu o futebol, mas sim o contrário. Habilidoso, já se acostumou com os “olhares de desconfiança” antes de o verem jogar. Seu talento e o longo tempo nos gramados fazem com que saia, de certa forma, imune ao preconceito que muitos de seus colegas sofrem. Pedro é um homem trans e seu sonho é ver um maior número de escolinhas sem gênero especificado e mais oportunidades para pessoas trans praticarem esporte, sem qualquer diferenciação.
Não há registros de um marco temporal exato de quando foi realizada a primeira atividade considerada como esporte. O futebol, segundo aponta a maior parte dos estudos, apesar de ter sido “criado” pelos ingleses em 1863, já era praticado muito antes em diferentes locais e épocas pelo mundo (como Grécia, Roma, China do início do século II). Sabemos, porém, que a primeira edição de um festival esportivo (Os Jogos da Antiguidade) ocorreu em Olímpia, na Grécia, em 760 a.C.
Já os Jogos Olímpicos da Modernidade foram inaugurados pelo Barão de Coubertin, que fundou o Comitê Olímpico Internacional (COI) com base na filosofia do olimpismo: o esporte como elemento central educativo do bom exemplo e respeito aos princípios éticos fundamentais universais, promovendo uma sociedade pacífica preocupada com a preservação da dignidade humana. Apesar do caráter universal dos valores defendidos, mulheres não estavam presentes nos Jogos Olímpicos de 1896, na Grécia. Elas só seriam incluídas nas competições quatro anos mais tarde, em Paris, e ainda assim de forma bastante tímida: de 997 atletas, apenas 22 mulheres, cerca de 2,2% do total. O número foi aumentado a cada edição, mas somente em 2024, novamente em Paris, será o mesmo que o dos homens.
Apesar de a Carta Olímpica nunca ter feito distinção entre atletas cisgênero e transgênero (muito pelo contrário, os valores difundidos são de universalidade e igualdade entre todos os envolvidos no esporte), pessoas trans só participaram pela primeira vez de uma edição dos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio 2020 (disputados no ano seguinte, por conta da pandemia): a levantadora de peso neozelandesa, Laurel Hubbard e a ciclista BMX estadunidense Chelsea Wolfe, e as atletas não-binárias (que não se identificam com nenhum gênero) Quinn, do futebol canadense, e Alana Smith do skate estadunidense.
A transexualidade está ligada à condição individual de divergência da identidade de gênero designada no nascimento, que busca a transição para o gênero oposto por meio de intervenção médica, podendo ser redesignação sexual ou somente feminilização/masculinização. A orientação sexual, vale lembrar, não se confunde com gênero. Este corresponde à forma como cada indivíduo se entende e se expressa no mundo, enquanto aquela (homo, hetero, bissexual, por exemplo) está ligada à atração sexual de cada pessoa.
Em 2015, o COI autorizou a participação de mulheres trans em competições olímpicas, desde que mantivessem seus níveis de testosterona abaixo de 10 nanomoles por litro de sangue por pelo menos 12 meses antes de sua primeira competição. Homens trans não possuíam qualquer tipo de restrição. Em volta do parâmetro estabelecido, os estudos inconclusivos sobre uma suposta vantagem esportiva, nunca comprovada, de mulheres trans sobre mulheres cis, que acabavam fomentando discursos de ódio e discriminação.
Após os Jogos de Tóquio 2020, entretanto, o entendimento da entidade mudou. O COI outorgou às Federações Internacionais de cada modalidade esportiva a prerrogativa de decidir critérios para a participação de atletas intersexuais e transgêneros em eventos do Movimento Olímpico. Assim, vôlei, judô e futebol, por exemplo, poderão ter regras de elegibilidade distintas, de acordo com seus entendimentos e que poderá justamente aumentar a discriminação ao invés de diminuí-la, como detalha a advogada desportiva e ex-gerente jurídica do Comitê Olímpico Brasileiro, Ana Paula Terra, “(a) Carta Olímpica, que é o Estatuto do Comitê Olímpico Internacional, não deixa dúvidas de que o combate à discriminação e a promoção da igualdade são missões das entidades que compõem o sistema. Contudo, a atual dinâmica, em que cada Federação cria os critérios de participação da modalidade que administra, permite que existam tratamentos técnicos e jurídicos distintos a situações semelhantes, colaborando com a intensificação de movimentos para a marginalização social de determinados grupos”.
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948 apresentou ao mundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), documento ímpar de trinta artigos que enumera os direitos básicos que toda pessoa deve ter “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. A ONU, vale lembrar, foi criada no contexto pós-Segunda Guerra Mundial e idealizou a Declaração como um norte para a defesa da paz mundial e da tentativa de evitar retrocessos. Não foi preciso muito tempo para que o órgão diplomático enxergasse no esporte, em geral, um importante aliado na promoção desses valores.
No Brasil, nos últimos anos, diversos projetos de leis estaduais tentam impedir a participação de atletas trans em competições oficiais. Tal situação não é uma obra do acaso, mas um movimento de emulação da extrema-direita brasileira ao que diversos políticos conservadores vêm fazendo nos Estados Unidos. Da ótica constitucional, reflete a Dra. Ana Paula Terra que, “(a) garantia constitucional da igualdade, explicitada no artigo 5º, me parece violada a cada novo projeto dessa natureza. A igualdade não encontra ressalvas na Constituição”.
O Ministério dos Esportes, em resposta oficial de sua assessoria de comunicação a nosso questionamento (“como o Ministério vê a participação de atletas trans em competições profissionais no Brasil?”), fez menção tanto à Constituição Federal quanto à Lei Geral do Esporte para lembrar da autonomia das instituições esportivas e destacou que as ações ministeriais são pautadas para promover uma sociedade cada vez mais inclusiva, conforme trecho destacado abaixo:
“O Ministério do Esporte (MEsp) trabalha para dar acesso à atividade física e ao lazer a todas e todos, sem nenhum tipo de discriminação, o que inclui as questões e gênero. O órgão atua sob uma perspectiva intersetorial, sob o entendimento que a integração é parte da essência do esporte como exercício para a convivência social que, em consequência, colabora na ponta do processo para o enfrentamento à violência e exclusão pelo gênero.
Da parte do MEsp, as políticas e ações afirmativas no Esporte seguem para corroborar a promoção de uma sociedade cada vez mais inclusiva, que garanta o direito de todas as pessoas à cidadania plena, de acordo com a Constituição Federal de 1988”.
Se o órgão máximo do esporte no Brasil garante (ou não proíbe) a participação de atletas trans em competições, por outro lado ainda não os vemos nas transmissões dos grandes canais do país, seja na reportagem de vídeo, narração, comentários ou apresentação. Apesar de nos últimos anos a diversidades nas redações esportivas ter aumentado, com a presença de gays, lésbicas e bissexuais, ao que parece ainda não há espaço para profissionais trans.
Na opinião do jornalista e atleta da Ligay Nacional de Futebol, Flávio Amaral, a falta de representatividade do segmento trans impacta diretamente na forma como a mídia esportiva aborda casos de transfobia (como nos ataques que a atleta Tiffany do vôlei sofre constantemente), “você nunca vai compreender da mesma forma, por mais que estude e se informe, na sua dimensão. Eu sou jornalista e faço parte da comunidade LGBTQIAPN+ e mesmo assim careço de entendimento de muita coisa, porque estamos sempre em formação. Tem pessoas muito competentes no jornalismo que certamente poderiam ocupar esses lugares, mas, infelizmente, ainda é uma desconstrução que os veículos da grande mídia precisam percorrer”.
Como bem lembrou Laurel Hubbard, nas Olimpíadas de Tóquio, “(o) esporte é para todas as pessoas!” e assim deverá ser sempre. Quem discorda, certamente, está a uma maratona de distância da humanidade.

