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Por Daniel Machado Gomes
O que é ser contemporâneo? – indaga o filósofo italiano Giorgio Agamben em ensaio publicado em 2008, no qual ele considera que o contemporâneo é sempre intempestivo. Na esteira dos ensinamentos do Nietzsche, Agamben afirma que a contemporaneidade se situa numa relação de desconexão e dissociação com o presente. Nesse sentido, o comportamento contemporâneo aponta sempre na direção do futuro, pois adere ao próprio tempo, mas dele mantém uma distância que permite inovar, acrescer, fazer a diferença. As notícias da morte do Papa trouxeram consigo reflexões sobre um legado que posiciona Francisco entre os pontífices que souberam ser contemporâneos. Mais do que o conteúdo, é sobretudo pela forma que o pontificado de Jorge Bergoglio se classifica como contemporâneo, já que seu modo de agir correspondeu aos desafios do presente, apontando caminhos para futuro.

A abertura ao diálogo, modus operandi de Francisco, possibilitou que mentalidades religiosas e seculares se modificassem de forma reflexiva, aprendendo com as contribuições umas das outras. Ao contrário do que alegaram forças conservadoras em oposição a Francisco, a atitude dialógica do Papa nunca significou violação do magistério católico. No entanto, profundamente marcada pelo espírito do Concílio Vaticano II, sua visão de mundo o levou a implementar mudanças bem concretas no funcionamento da Igreja. Tais alterações se basearam em valores que, até então, estavam mais associados à ordem secular dos modernos regimes democráticos do que ao governo da instituição religiosa de Roma. Foi o caso, por exemplo, da noção de transparência na gestão que levou Francisco a intervir no Banco do Vaticano, bem como das concepções de isonomia e pluralismo que marcaram a noção de sinodalidade e que trouxeram os vulneráveis para o centro das preocupações da Igreja.

Se Francisco soube incorporar a axiologia moderna ao seu pontificado, ele soube igualmente exercer uma voz religiosa no debate público travado no ambiente laico. Em sua atuação política, o líder católico colaborou intensamente com o pós-secularismo que vem se instaurando na cultura ocidental desde meados do século XX. Segundo Jürgen Habermas, pensador do agir comunicativo, o pós-secularismo se caracteriza principalmente pela possibilidade de incorporação na ordem civil das razões invocadas pelos cidadãos crentes em discussões públicas. É por meio dessas discussões que, nas atuais democracias, se definem os consensos pelos quais são criadas as leis e as políticas públicas dos Estados. Habermas explica que, apesar de o projeto político da modernidade ser necessariamente secular, nas sociedades democráticas, o secularismo teria se encaminhado para um pós-secularismo, ultrapassando a oposição entre razão e fé numa relação colaborativa.
Francisco contribuiu com argumentos baseados na fé para o debate sobre temas desafiadores da vida política atual, como, por exemplo, mudanças climáticas, migrações e direitos dos LGBTQI+. Para tanto, ele enfrentou preconceitos de reacionários e interesses de líderes da extrema-direita, sem recuar na defesa da dignidade humana dos oprimidos, fossem eles os palestinos, os migrantes sírios ou os homossexuais. Vale lembrar, porém, que houve momentos em que o Papa desagradou progressistas que esperavam mudanças doutrinárias mais radicais. Houve ainda situações nas quais Francisco contrariou conservadores que discordavam de suas atitudes misericordiosas. Todavia, nada disso importa, quando se analisa o legado deixado por Bergoglio. Ele foi contemporâneo pelo modo como abriu dialogicamente a Igreja ao mundo através de processos que atuam como ondas em direção ao futuro. Nisso reside uma compreensão profunda sobre o sentido da universalidade da Igreja, uma percepção de que a mensagem cristã ecoada pelo magistério católico constitui uma das mais poderosas raízes éticas da cultura ocidental.

A manutenção da relevância do catolicismo enquanto fonte moral para o mundo dependerá de que o novo líder espiritual da Igreja não retroceda nos processos iniciados pelo último pontífice, caso contrário o catolicismo ficará diminuído em sua importância. Se ceder aos ultraconservadores que preconizam formas de religiosidade voltadas para o passado, o discurso religioso católico passará a reverberar tão somente entre os fiéis, perdendo a capacidade de se comunicar com os demais. Como católico significa universal, o que está em questão é a própria catolicidade do catolicismo a partir da escolha do sucessor do Papa. Espera-se que a barca de Pedro siga a rota de Francisco na direção de uma Igreja contemporânea com relevância universal na defesa dos que não têm voz.

