A mudança de ritmo no filme Anora 

Foto Capa: reprodução/Universal Pictures

Por Rodrigo Modenesi

O filme Anora (2024) de Sean Baker, ganhador da Palma de Ouro em Cannes e de cinco Oscars, incluindo melhor filme, direção, montagem, atriz e roteiro original, provoca um desconforto nos espectadores na sua segunda metade.  Alguns espectadores e críticos escreveram que o filme tem um problema de ritmo a partir do meio até o final. Ocorre realmente uma mudança de ritmo na montagem a partir deste ponto do filme. Essa constatação está correta.  

No entanto, não se trata de um problema de estrutura narrativa e nem mesmo de uma falha da montagem. Caso contrário, o filme não teria ganho justamente os Oscars de roteiro e de montagem. Pois, ambos são bem construídos e executados. Para entendermos por que Sean Baker optou por produzir uma mudança de ritmo em Anora, devemos olhar para a História do Cinema e para as diferentes linguagens cinematográficas.  

A mudança de ritmo em Anora é intencional e corresponde a uma mudança de regime de imagens. O filme passa do regime do Cinema Narrativo Clássico para o do Cinema Moderno. Essas categorias de imagens foram constatadas e propostas pelo filósofo francês, Gilles Deleuze, em seus livros A imagem-movimento e A imagem-tempo. Pretendo explicar de modo breve e conciso a diferença entre um regime e outro a partir do exemplo do próprio filme para que possamos entender por que o diretor optou por essa mudança de ritmo. 

A atriz Mickey Madison e o ator Mark Eydelshteyn nos papéis de Anora e Zakharov (créditos: reprodução/Universal Pictures)

Anora inicia como um típico filme hollywoodiano de comédia romântica ou de ação. As imagens estão a serviço da narrativa e a montagem busca contar do modo mais eficiente a estória do filme. Tudo o que é mostrado aos espectadores traz informações que servem para fazer avançar a trama do filme. Por isso, neste regime de imagens, as ações dos personagens ganham destaque. Vemos Anora conhecer Zakharov, o jovem herdeiro russo, seduzi-lo e casar-se com ele. Até o meio do filme, temos um ritmo rápido e ágil que caracteriza a estética do Cinema Narrativo Clássico.  

Mas, a primeira parte do filme funciona como uma espécie de armadilha que serve para capturar os espectadores de filmes de entretenimento hollywoodianos para, em seguida, jogá-los em um território pouco conhecido que é o da estética dos filmes do Cinema Moderno. O filme tem uma trajetória que vai do clichê do cinema de gênero ao desconhecido de um campo sem referenciais definidos. 

Por isso, a partir da segunda parte do filme, na sequência da busca pelo jovem herdeiro, as imagens estão menos a serviço de fazer avançar a trama e se colocam como um meio para o desenvolvimento dos personagens e da percepção do mundo no qual eles estão inseridos. Aqui há uma mudança perceptível no ritmo das imagens e da montagem. O roteiro do filme parece parar e a trama parece ir para o acostamento. A ação da busca pelo rapaz é dilatada e esgarçada pelo tempo da sequência. O desenvolvimento da trama central, a procura pelo herdeiro, deixa de ser o mais importante. Agora importa ver os gangsters russos desajeitados e deslocados numa paisagem que eles não dominam e não entendem. Eles são mostrados como anti-heróis inaptos para realizar as tarefas mais simples, como estacionar um carro, ou pedir uma informação.  

O ator Yura Borisov no papel de Igor, integrante da máfia russa (créditos: reprodução/Universal Picturas)

A partir deste ponto do filme, seguindo estes outsiders desajeitados, estamos entrando no terreno do Cinema Moderno. Vemos estes personagens marginais realizarem tarefas comuns do cotidiano em lugares quaisquer, como caminhar a noite pela orla de uma praia deserta e fazer um lanche num fast food. Tudo isso feito com uma enorme sensação de não pertencimento e de distância entre os personagens e o mundo que os rodeia. O tom cômico desta sequência é acompanhado pelo sentimento melancólico e agudo da fragilidade e da vulnerabilidade destas figuras. 

Simultaneamente ao enfraquecimento da trama central, graças ao ritmo lento das imagens, as personagens se tornam mais densas. Elas ganham profundidade e complexidade psicológica. Ao mesmo tempo, tramas secundárias e paralelas começam a se desenhar. Com isso, os espectadores têm a oportunidade e o tempo de se aproximar da ambiguidade de Anora e das idiossincrasias das demais personagens. 

Neste momento, as regras e as hierarquias do Cinema Narrativo Clássico são quebradas e um personagem que parecia ser secundário na trama central começa a adquirir importância dramática. Igor, o jovem soldado da máfia russa, ganha espaço e tempo na imagem, e posteriormente na trama do filme. Essa inclinação e deriva em direção à estética do Cinema Moderno vai se delineando durante toda a segunda metade até o final do filme. Desse modo, a trajetória tortuosa de Anora vai desconstruindo as expectativas e os clichês do cinema narrativo clássico: Zakharov, o jovem herdeiro, se mostra um covarde incurável, Igor, o violento soldado da máfia, se revela um homem sensível e Anora se apresenta como um enigma opaco e impenetrável. 

A atriz Mickey Madison no papel de Anora (créditos: reprodução/UniversalPictures)

A cena final, com Anora e Igor no interior de seu carro, não se inscreve absolutamente na cartilha do Cinema Narrativo Clássico e eleva a tensão dramática de modo inesperado e surpreendente. Temos a impressão que as personagens se libertam do lugar-comum de um roteiro pré-estabelecido e passam a seguir seus impulsos mais íntimos. As personagens ganham vida e, com isso, abre-se um espaço de incerteza e de profunda imprevisibilidade. O nível de ambiguidade e de opacidade das atuações de Mickey Madison e de Yura Borisov abre a possibilidade de múltiplas interpretações e força o espectador a pensar sobre as personagens, suas histórias pessoais e seus destinos. Lição aprendida do Neorrealismo Italiano. Nesse momento, o filme está plenamente dentro do território do Cinema Moderno.   

Aqueles que conhecem os filmes anteriores de Sean Baker, como Tangerina (2015) e Projeto Flórida (2017), sabem que ele não é um diretor de filmes de entretenimento. No entanto, devido a suas características estéticas, Anora têm a chance de atrair o interesse do grande público, habituado a filmes de entretenimento, e também do público amante do cinema de autor, ou cinema de arte. Talvez por isso o longa-metragem tenha realizado a proeza de conquistar prêmios importantes em Cannes, que é um festival voltado para filmes de autor, e no Oscar, que contempla majoritariamente filmes de entretenimento. 

Deixe um comentário