Pobreza menstrual, gravidez precoce e aborto: as denúncias em ‘Manas’ 

Foto capa: Instagram

Por Mariana Silvestre

‘Manas’ é um filme produzido pela documentarista Marianna Brennand, que conta a história de Marcielle (Jamille Correa), uma menina de 13 anos que vive na Ilha do Marajó, no Pará, e que passa a se prostituir nas balsas que cruzam a região. A ideia inicial da diretora era produzir um documentário sobre o tema, que, além de ser real, ganhou visibilidade nos últimos tempos após denúncias de artistas, políticos e ativistas sociais.  

Marianna passou 2 anos no Marajó conhecendo pessoas afetadas pela situação e acompanhando o trabalho de ativistas que atuam na causa. Ao perceber a vulnerabilidade das vítimas, decidiu não as expor novamente aos seus traumas. Por isso, optou por transformar os relatos em um filme de ficção inspirado nas histórias reais que conheceu durante sua vivência na região. “Era inaceitável para mim colocar diante da câmara crianças e mulheres que tinham passado por situações dilacerantes de abuso. Fazê-lo seria cometer mais uma violência contra elas”, afirma Marianna Brennand. 

Problemas sociais retratados no filme (contém spoilers) 

Pobreza menstrual 

Nas cenas iniciais, a protagonista aparece lavando, em um manguezal, um pedaço de pano usado durante o período menstrual. A extrema pobreza da região impede o acesso a itens básicos de higiene, como absorventes, levando muitas meninas a recorrerem a improvisações para cuidar do próprio corpo.  

Cenário da casa de Marcielle na Ilha do Marajó. Foto: Divulgação/Manas 

Segundo dados da Unicef (2021), 15 milhões de pessoas no Brasil vivem sem acesso a produtos de higiene menstrual, sendo mais afetadas as mulheres das classes D e E, especialmente das regiões Norte e Nordeste do país.  

Tabu em torno da educação sexual, influenciado pela religião 

Marcielle e seus irmãos estudam em uma escola ligada à igreja frequentada pela família. Em uma das cenas, os livros de biologia entregues aos alunos têm páginas grampeadas, proibidas de serem abertas, justamente aquelas que abordam as partes genitais do corpo humano. A cena evidencia como que, em muitas comunidades, a educação sexual ainda é tratada como um tabu por influência de valores religiosos.  

– Apenas 3 estados do Brasil (Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e São Paulo) possuem disciplinas ou projetos escolares voltados a sexualidade.  

– Entre 2014 e 2022, foram apresentados 217 projetos de lei que buscavam proibir conteúdo de gênero e sexualidade em escolas públicas. 

– Em 2022, 27% dos brasileiros discordavam da inclusão de educação sexual na grade curricular, segundo o Datafolha.  

– No entanto, 91% acreditavam que o tema, se tratado nas escolas, poderia prevenir abusos.  

Falta de infraestrutura escolar 

Na escola frequentada por Marcielle, há apenas uma turma mista para alunos de diferentes series, com uma única professora. Os estudantes não têm acesso a materiais básicos, como cadernos. Isso reflete a precariedade das escolas da região, agravado pela pobreza local. 

Segundo o IBGE (2023), cerca de 24% dos jovens de 15 a 17 anos estavam fora da escola. A evasão escolar está frequentemente ligada à falta de estrutura e materiais adequados. As taxas são mais altas nas regiões Norte e Nordeste, onde menos de 70% dos alunos concluem os estudos.  

Gravidez precoce e aborto ilegal 

Uma das figurantes do filme aparece grávida ainda na pré-adolescência, enquanto uma das coadjuvantes é mostrada preparando um chá abortivo após engravidar em uma das balsas. A personagem, assim com Marcielle, tem apenas 13 anos. 

No Brasil, o aborto é legal apenas em três situações: risco de vida para mãe, estupro e microcefalia. A criminalização do aborto, aliada à precariedade no sistema de saúde, faz com que muitas mulheres recorram a métodos inseguros, como chás abortivos, objetos perfurantes ou clínicas clandestinas.  

– Entre 2020 e 2022, cerca de 1 milhão de jovens de até 19 anos tinham filhos (Agência GOV e Agência Brasil). 

– O SUS realizou 8,6 mil abortos liberados entre 2016 e 2020. Para cada aborto autorizado,100 atendimentos foram realizados para vítimas de abortos espontâneos ou clandestinos. 

– Segundo a PNA (2021), 52% das mulheres que abortam no Brasil, tem até 19 anos de idade.  

Cidadania Invisível  

Em uma das cenas, Marcielle e uma amiga visitam um projeto social que emite documentos de identidade. A menina, até então sem nenhum registro civil, tenta tirar sua primeira identidade.  

Jamille Correa atuando em cena com Dira Paes . Foto: Divulgação/Manas

De acordo com dados oficiais, cerca de 3 milhões de brasileiros não possui documentos de identidade como certidão de nascimento, RG ou CPF. Essa invisibilidade jurídica é reflexo da vulnerabilidade social e dificulta o acesso a serviços públicos básicos, além de comprometer o exercício pleno da cidadania.  

Abuso em casa 

“Eles falam sobre o que a gente faz nas balsas, mas não falam sobre o que fazem com a gente dentro de casa”, essa frase, dita por uma personagem de 13 anos, destaca que a violência sexual não ocorre apenas nas balsas, mas também dentro das próprias casas. O filme expõe, com sensibilidade, como o abuso intrafamiliar ainda é o mais comum e o mais silenciado”.

Marcielle com seu pai em um manguezal . Foto: Divulgação/Manas

Segundo o ministério da saúde, o Brasil registrou 202,9 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes entre 2015 e 2021. A maioria das agressões ocorre em ambientes domésticos, e são cometidas por familiares, amigos ou conhecidos.  

Manas tem sido elogiado por retratar com responsabilidade e sensibilidade diversos problemas sociais, respeitando as vítimas que compartilharam suas histórias e protegendo o elenco infantil. O filme recebeu o Director’s Award no Festival de Veneza de 2024 e está na lista dos filmes brasileiros cotados para disputar uma vaga no Oscar.

Um comentário sobre “Pobreza menstrual, gravidez precoce e aborto: as denúncias em ‘Manas’ 

  1. This article was shocking to read. I had no idea things were so bad in Brazil. Journalism at its finest. Keep up the amazing work.

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