Foto capa: As protagonistas do filme Emilia Pérez (reprodução/Paris Filmes).
Por Rodrigo Modenesi
O filme Emilia Pérez (2024) de Jacques Audiard, vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes, dividiu a opinião dos espectadores. Alguns gostaram muito e outros nem tanto. Parte do descontentamento foi gerado pelo fato de haver uma possível incompatibilidade entre a trama do filme e a sua forma. A estória de um violento traficante mexicano que decide mudar de sexo e se tornar mulher foi contada no gênero musical.
Na História do Cinema, o musical normalmente foi utilizado para embalar narrativas de amor e outros temas suaves e amenos. Podemos dizer que o tema e o contexto da estória de Emilia Pérez são muito pouco suaves e amenos. A partir desse aparente descompasso entre forma e conteúdo, decidi buscar entender por que o diretor optou pelo gênero musical para narrar seu filme.

A atriz Karla Sofía Gascón no papel do traficante Manitas. Foto: Reprodução/Netflix
À primeira vista, a escolha pelo gênero musical neste filme parece indicar um equívoco estético. Mas, ao analisarmos a construção da estrutura do filme, descobrimos uma possível explicação formal e narrativa para a escolha. A estória do filme é bastante inverossímil: um violento traficante mexicano contrata uma advogada para ajudá-lo a realizar uma operação de redesignação sexual. Após a transição, o ex-chefe do tráfico se arrepende de suas atividades pregressas e decide abrir uma ONG para famílias encontrarem os corpos e os restos mortais das vítimas do tráfico de drogas.
Muito provavelmente se o filme adotasse uma linguagem naturalista, que busca produzir uma impressão de realismo, a sua trama e seus desdobramentos seriam considerados bastante inverossímeis e os espectadores teriam muita dificuldade de acreditar na personagem e em sua trajetória. Ou seja, se o filme buscasse imprimir uma impressão de realismo, provavelmente ele iria produzir um efeito de afastamento e iria fazer os espectadores não acreditarem na sua trama. Haveria uma quebra da crença ficcional e uma não adesão dos espectadores em relação à estória do filme. A audiência muito provavelmente pensaria, “essa trama é totalmente absurda e impossível de acontecer na realidade”, e com isso, não iria embarcar na tensão dramática da narrativa.

A atriz Karla Sofía Gascón no papel de Emilia Pérez. Foto: Reprodução/Site Estadão
É importante lembrar que o gênero musical normalmente possui a caraterística de produzir um distanciamento estético em relação à trama do filme, sem, no entanto, romper com a tensão dramática da narrativa. Ou seja, esse gênero produz o efeito de criar na mente dos espectadores a seguinte enunciação, “isso é um filme, uma obra de arte de ficção”. Com isso, os espectadores tendem a aceitar com mais naturalidade as inverossimilhanças da trama narrada e a imergir na tensão dramática do filme. Sempre que, durante o fluxo narrativo, há um número musical e todos começam a dançar e a cantar, é como se o filme assumisse seu status de ficção e dissesse: “isso é um filme”. Desse modo o espectador não se sente enganado por uma tentativa de buscar naturalizar uma trama inverossímil e aceita os “absurdos ficcionais” da narrativa. O gênero musical, neste caso, permite uma espécie de licença poética para que a trama improvável possa ser narrada sem provocar o sentimento de estranhamento do público.
Portanto, não se trata de um equívoco e, nem mesmo de um capricho do diretor, a escolha do gênero musical em Emilia Péres. Essa decisão provavelmente foi pensada para buscar legitimar esteticamente uma narrativa inverossímil que se aproxima de uma fábula contemporânea. Para narrar essa estória e garantir a adesão dos espectadores, o diretor optou pelo gênero musical como um meio de validar a sua trama.
Trailer oficial do filme: https://www.youtube.com/watch?v=JqcD_24M0-M&t=75s
