Capoeira: de crime a marco da cultura no Brasil

No dia 3 de agosto, comemora-se o dia nacional dos praticantes da capoeira. No entanto, apesar de hoje serem considerados elementos essenciais da história nacional, os capoeiristas já foram classificados como criminosos e perseguidos pela polícia 

Foto de capa: Reprodução/Rádio Canadá

Por Rodrigo Glejzer 

Desde 1985, quando foi aprovada a Lei nº 4.649, o Brasil comemora o Dia do Capoeirista em 3 de agosto. Conhecida pelos movimentos plásticos, as cantigas alegres e pelo toque de berimbau, a capoeira foi considerada, em 2008, como bem da cultura imaterial do Brasil, por indicação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Seis anos depois, foi a vez de a Roda de Capoeira entrar para a história ao ser declarada como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. 

Todavia, apesar de hoje ser uma respeitada modalidade marcial, a capoeira sofreu muitos entraves dentro do Brasil, principalmente entre as épocas colonial e primeira república. Taxada como crime até 1937, a “dança de golpes” foi validada nacionalmente apenas a partir da década de 1940, quando pensadores como Arthur Ramos, Edson Carneiro e Gilberto Freyre trataram de inovar os estudos sobre raça. 

A origem da capoeira 

Colônia portuguesa desde o século XIX, o Brasil viu sua antiga metrópole usar duas principais forças para abrir espaço mata a dentro e estabelecer o controle da região: a indígena e a africana.  

A primeira foi muito usada pelos bandeirantes, seja por meio de acordos ou escravidão, principalmente pelo seu baixo custo, conhecimento da região e técnicas de plantação e lavouras. Além de serem importantes para a manutenção das vilas que iam se formando conforme o interior brasileiro era desbravado.  

No entanto, o uso excessivo e brutal, já que os nativos não passavam de meras quinquilharias aos olhos dos bandeirantes, junto às doenças estrangeiras, como a gripe, contribuíram muito para o processo de dizimação da população local. Entre os séculos XVI e XVII, estima-se, segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que pouco mais de dois milhões de indígenas tenham morrido dentro do processo de colonização brasileira.  

Primeira forma de escravidão utilizada no Brasil, os indígenas quase foram dizimados pelos colonizadores – Imagem: Jean Baptiste Debret 

Como o progresso não poderia parar, a metrópole portuguesa não demorou a procurar nova mão de obra conforme a nativa começava a minguar. Detentores de algumas colônias na África (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique), os lusos passaram a encher diversos navios negreiros em direção à costa verde e amarela e, aos poucos, começaram a fazer a troca das forças de trabalho.  

De acordo com o site da Fundação Palmares, cerca de 70% dos africanos que chegaram ao Brasil vinham da etnia Banto, povos vindos da África Meridional. Numerosos, trouxeram consigo não só os braços para trabalhar nas plantações de açúcar e café, carro chefe da colônia verde e amarela, mas também sua cultura e modo de vida.  

Quando não estavam com enxada na mão ou fugindo do chicote, o povo negro se juntava para celebrar suas raízes. Cantavam, dançavam e se exercitavam pelas ruas e vielas. Inclusive, um dos meios mais populares de lazer era, justamente, a capoeira, uma arte marcial que facilmente poderia ser confundida com uma dança devido aos movimentos plásticos dos participantes.  

Em rodas e regidos pelo som do berimbau, agogô e reco-reco, as pessoas se reuniam não apenas para passar o tempo, mas também, segundo Katiusca Mello, doutora em Ciências da Atividade Física e Desportiva pelo Instituto Nacional de Educação Física (INEF) da Universidade de León, na Espanha, para “adestrar seus corpos, descobrindo a essência de uma arma que seria de grande valia para conquistar a sua própria liberdade”. Em outras palavras, foi através da arte da capoeira que os escravos negros encontraram uma forma de se defender contra os desmandos dos colonizadores, que os viam de forma tão desumana quanto os indígenas.  

A capoeira era tanto forma de distração, como de resistência para os escravos – Imagem: Augustus Earle  

Uso político dos capoeiras  

Com o passar dos anos, os capoeiras ganharam uma função importante no meio político. Membro do partido conservador e praticante da capoeira, mesmo sendo branco e de família nobre, Duque Estrada Teixeira viu nos negros capoeiristas uma forma de conseguir um braço armado para tanto coagir a população, como também os partidos opositores.  

Como boa parte dos escravos havia servido em Assunção, durante os conflitos com o Paraguai entre 1864 e 1870, e mostrado grande capacidade de combate, foram novamente recrutados assim que chegaram vitoriosos ao Brasil. Agora servindo como capangas políticos, se armaram com navalhas e porretes e dividiram-se em diversas gangues com o único intuito de fazer valer a palavra do partido conservador, até então o grupo no controle do poder no Rio de Janeiro, na época capital do império.  

O principal grupo se localizava na Glória, atendia pelo nome “Flor de Gente” e disputava com rivais pelo domínio de bairros como Santa Rita, Campo de Santana e Largo do São Francisco. Apesar de serem na maioria negros, os grupos eram formados por gente liberta e muito bem vestidos, com roupas caras como terno e cartola. Fiéis ao imperador, eram os responsáveis por manter os conservadores no poder, já que a violência em suas ações dificultava que outras pessoas se elegessem.  

A agressividade era tanta que era comum os embates ocasionarem ferimentos graves e, até mesmo, mortes durante as disputas por territórios, nos ataques políticos ou nos confrontos com as forças de segurança. Por isso, a ação destes grupos sempre esteve no radar das autoridades policiais, que faziam imenso esforço para reprimir suas ações e evitar que eles continuassem a controlar os bairros. Todavia, como os capoeiras gozavam da proteção política dos conservadores, era muito difícil fazer avançarem os processos criminais contra essas gangues políticas.  

A capoeira na política e a distribuição das gangues no Rio de Janeiro – Crédito: Museu da Capoeira Oficial 

1890 a 1937: de crime a marco cultural 

A situação dos capoeiras começou a mudar a partir de 1878, quando os conservadores saíram do poder a favor dos liberais. Onze anos depois, o império brasileiro foi desmantelado por um golpe republicano encabeçado pelos militares. Com Marechal Deodoro da Fonseca na presidência e sem os partidos conservadores para dar suporte, a polícia conseguiu muito mais autonomia para caçar e prender os capoeiras.  

Para perseguir e dar fim às ações dos praticantes na cidade do Rio de Janeiro, agora também capital da República, a presidência do país incumbiu Sampaio Ferraz, então promotor, como chefe de polícia e deu carta branca para suas ações. Segundo o Museu da Capoeira Oficial, cerca de dois mil capoeiras foram enviados para a prisão de Fernando de Noronha, em Pernambuco, e a mais de dois mil quilômetros da capital fluminense.   

Essa condição durou até 1937, quando a capoeira foi descriminalizada e dada a característica de esporte nacional pelo presidente Getúlio Vargas. Isso ocorreu por dois fatores importantes. Pela renovação de pensamento, principalmente com Arthur Ramos, Edson Carneiro e Gilberto Freyre, quanto à questão racial no país, e pelos esforços dos Mestres Bimba e Pastinhas, responsáveis tanto pela luta em tirar o estigma de ação marginal da capoeira, como também pelas primeiras academias legalizadas voltadas para a atividade.  

Em 1972, foi oficializada como prática esportiva no Brasil. Hoje, há registros de suas atividades em mais de 100 países e em todos os continentes. Inclusive, há reivindicação para que a prática um dia seja considerada olímpica por parte da Federação Mundial de Capoeira, localizada na Estônia. 

A criminalização da capoeira – Crédito: Museu da Capoeira Oficial 

Tipos de capoeira: Angola e Regional 

Apesar de o Rio de Janeiro ser o centro do país quando a capoeira saiu da condição de crime para esporte, foi na Bahia que a prática começou a ganhar muita força. Os principais responsáveis por isso foram os Mestres Bimba e Pastinha.  

Nascido na capital baiana, em Salvador, em 1889 e ensinado por Mestre Barnabé, um dos tantos africanos que vieram para o Brasil na época imperial, Vicente Ferreira Pastinha viveu durante toda a dura repressão à capoeira. Mesmo livres, depois do fim da escravidão em 1888, os negros ainda eram considerados vagais e, duramente, perseguidos. Aqueles que praticassem capoeira sofriam duas vezes mais.  

Tanto era o problema que, entre 1913 e 1934, Mestre Pastinha teve que trabalhar de pintor, pedreiro, entregador de jornais e até tomou conta de casa de jogos. Quando a prática da capoeira foi liberada, a situação virou completamente. De acordo com a Fundação Palmares, ao chegar à roda de capoeira da Jinjibirra, Mestre Pastinha foi incumbido pelas lideranças locais de dar continuidade ao ensino da capoeira tradicional. 

Os mestres da capoeira brasileira – Foto: Reprodução/Cultura do Corpo 

Dotada de movimentos lentos e plásticos, a Capoeira Angola por vezes é mais comparada a uma dança do que a uma luta. Arraigada nas tradições africanas, procura preservá-la ao mesmo tempo em que trabalha corpo e mente de seus praticantes. É a versão mais tradicional da luta.  

Em contrapartida, Mestre Bimba, outro baiano de Salvador e dez anos mais novo que Mestre Pastinha, optou por trazer uma face mais moderna. Nascido como Manoel dos Reis Machado, foi apresentado à capoeira por Mestre Bentinho, africano capitão da Companhia de Navegação Baiana aos 12 anos. Batendo 27 anos, Mestre Bimba já era considerado mestre, mas, assim como Mestre Pastinha, também foi vítima de represálias do governo e teve que viver de outros trabalhos como carvoeiro, trapicheiro, carpinteiro e doqueiro (trabalhou em docas). 

Quando a capoeira saiu da ilegalidade e passou a poder ser praticada, mesmo que, inicialmente, em sigilo, Mestre Bimba abriu sua primeira academia por volta de 1932. Diferentemente do que era executado de forma mais tradicional, a Capoeira Regional, ou baiana, optou por golpes mais rápidos e mais violentos, tentando se assemelhar mais às lutas praticadas no oriente, como o karatê. Em termos esportivos, é a opção mais procurada por atletas.  

O professor Dija Damasceno explicou, em vídeo, algumas diferenças básicas entre a capoeira regional e a de Angola  

A capoeira representada no Brasil 

Dirigido por João Daniel Tikhomiroff em 2009, o filme “Besouro” é uma das mais bonitas representações da capoeira em território nacional. Contando a história de Manuel Henrique Pereira, conhecido como Besouro, o filme retrata as dificuldades de se praticar a capoeira em meio à criminalização da prática e à crise da abolição da escravatura, que, apesar de ter sido exercida em papel, não era feita na prática. Ensinado por Mestre Alípio, o protagonista aprende, junto à capoeira, a não só se defender, mas também a ter virtude em suas ações.  

Trailer do filme “Besouro”, de 2009 – Crédito: Fernando Cândido 

Em 1998, o diretor Antônio Carlos Muricy realizou um documentário sobre a vida de Mestre Pastinha, o rei da Capoeira Angola. Com narração do ator Milton Gonçalves, o filme traz diferentes personalidades e estudiosos para mostrar não só a importância da capoeira, como a de Mestre Pastinha para o Brasil.  

Documentário “Pastinha! A vida pela capoeira” – Crédito: Toninho Muricy 

Mais antigo, o filme “O Pagador de Promessas”, de 1962. Dirigido por Anselmo Duarte e tendo Leonardo Villar e Glória Menezes nos papéis principais, o material conta a história de Zé do Burro. Vivendo no interior da Bahia, Zé vê seu animal de estimação, um burro, ser atingido por um raio. Desesperado, vai até um terreiro de macumba e faz uma promessa caso o animal viva. Com o burro de pé dias depois, o protagonista começa uma via crucis até Salvador.  

O interessante do filme é ver como é retratado o preconceito com aquilo que vem das regiões africanas, mesmo com quase um século da abolição da escravatura. O principal problema de Zé do Burro não é a cruz de madeira que carrega como promessa, mas o preconceito do Padre que não o permite cumpri-la por ter sido feita em um terreiro de macumba. Outro ponto é uma cena em particular na qual diversas pessoas, de maioria negra, comemoram animadas do lado de fora da capela. Entre as celebrações, vemos uma roda de capoeira. Em resposta ao que acontece do lado de fora, o padre toca, fervorosamente, o sino da catedral para dispersar a multidão eufórica.  

Quase 30 anos depois da descriminalização da capoeira, o cinema brasileiro tratou de representar a luta nas telas – Crédito: Batuque Capoeira 

As representações da capoeira na cultura internacional 

Antes proibida e agora uma atividade praticada por milhares de pessoas, a capoeira já teve suas representações em diferentes mídias. A mais famosa, sem dúvida, está nos videogames e dentro da famosa série de luta Tekken. Personagem desde 1997, ano de lançamento do Tekken 3, o brasileiro Eddy Gordo trouxe o mundo da capoeira a diversas crianças, adolescentes e adultos. Conhecido por ser bastante apelativo, com seus movimentos rápidos favorecendo diversos combos de golpes, o brasileiro se tornou uma das figuras mais famosas entre os jogos de luta.  

Representação mais famosa da capoeira em cenário internacional, Eddy Gordo é o Brasil no Tekken – Crédito: BANDAI NAMCO Brasil 

Levando para a grande telona do cinema americano, os estrangeiros não costumam deixar a capoeira de fora quando se trata de torneios de artes marciais. No filme “Desafio Mortal”, estrelado e dirigido pela celebridade belga Jean-Claude Van Damme, o mestre de capoeira Cesar Carneiro foi chamado para o filme, justamente, para representar a arte marcial brasileira no ringue fictício. 

Cena de luta envolvendo capoeira durante o filme “Desafio Mortal” – Crédito: Rezzzolute Motivation 

O cinema tailandês também não deixou a capoeira de fora. Em 2005, o filme “O Protetor”, protagonizado por Tony Jaa, trouxe Lateef Crowder dos Santos, um baiano radicado nos EUA, para representar os golpes ensinados pelos mestres Bimba e Pastinha ao público asiático. Não à toa, Crowder ainda seria o responsável por representar Eddy Gordo no primeiro filme baseado na franquia Tekken em 2009. 

Tony Jaa em luta coreografada contra Lateef Crowder – Crédito: Koen’s Jiu Jitsu 

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