Foto de Capa: Marcello Casal Jr./Agência Brasil (19/08/2020)
Por Mattheus Hartmann
No início de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar se vítimas de crimes podem exercer o benefício do direito ao esquecimento. A Corte iniciou o debate que confronta liberdade de expressão e direito à intimidade em razão do caso Aída Curi, assassinada após uma tentativa de estupro, no Rio de Janeiro em 1958.
Evidente que, quando divulgado, o caso possui o potencial de conscientizar sobre o feminicídio, além de mostrar a existência do crime muito antes do termo ser incluído na legislação brasileira através da Lei nº 13.104, de 2015. No entanto, a família argumenta que, além de tristeza e indignação com o crime, o noticiário da época deu notoriedade e gerou uma estigmatização do sobrenome Curi após ser lembrado pelo programa Linha Direta, da TV Globo, em 2004.
O relator do processo, o ministro Dias Toffoli, iniciou a leitura da primeira parte de seu voto e fez um resumo histórico dos casos julgados no mundo que envolvem o tema. Com isso, ele entendeu o direito ao esquecimento como “incompatível com a Constituição”. Para o ministro, impedir o acesso a informações verdadeiras e obtidas de forma legal fere a liberdade de expressão. Ainda durante o julgamento, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, declarou ser contra o recurso ao dizer que a liberdade de expressão não perde sua aplicação durante o tempo.
“A pretensa ideia de um direito ao esquecimento é extrair, no transcurso do tempo, uma possibilidade de afetar a liberdade de expressão. O que hoje é livre de se dizer, será que o tempo passará e essa liberdade caducará? Como se essa liberdade de expressão tivesse prazo de validade numa sociedade livre e democrática”, afirmou.
Mas antes de seguir com alguns detalhes da votação e das colocações dos ministros do STF, é importante entender o que é o fundamento do direito ao esquecimento.
O que é direito ao esquecimento?
O direito ao esquecimento é o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, mesmo verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral e possa causar algum sofrimento ou transtorno. Entretanto, existe um marcante conflito entre a liberdade de expressão e atributos individuais como a intimidade, privacidade e honra, que envolvem toda a discussão ao redor do direito ao esquecimento.
A discussão quanto ao direito ao esquecimento começou com o intuito de tratar dos casos de ex-condenados, que almejavam que seus antecedentes criminais não fossem divulgados, desta forma, teriam a possibilidade de serem reintegrados na sociedade. Porém, atualmente o debate cresceu e ganhou variantes capazes de envolver outros aspectos da vida de um ex-detento que vislumbra o esquecimento como chance de um recomeço.
Em uma era com diversos avanços tecnológicos e com todo o imediatismo e instantaneidade das redes sociais, o direito ao esquecimento ganhou importância, pois a facilidade para acessar acervos de notícias, fotos e vídeos, mesmo que antigos, é potencializada por um universo amplamente conectado e com acesso cada vez mais abrangente à internet.
Todavia, o direito de desaparecer com informações que retratam uma pessoa consiste na perda de uma história. A partir disso, o direito ao esquecimento coloca em xeque o direito à memória coletiva.
E caso o direito ao esquecimento seja capaz de apagar os registros de crimes ou criminosos que entraram para história pela perversidade? O principal ponto de conflito quanto à aceitação do direito ao esquecimento está justamente em como conciliar esse direito com a liberdade de expressão, com o direito à memória e à informação.
É possível ter harmonia entre os direitos ao esquecimento, à informação e memória?
O ponto crucial é analisar a existência de um interesse público atual na divulgação de determinada informação. Ao levarmos em consideração o caso julgado pela Corte, temos um crime ocorrido em 1958 que foi um fato histórico por exercer a comprovação do feminicídio, além de ter interesse público e ser impossível falar sobre o crime sem mencionar o nome de Aída Curi, já que estamos falando de crimes históricos, como os casos Isabella Nardoni e Eliza Samudio.
Por outro lado, caso não haja nenhum interesse público, o direito ao esquecimento poderá ser colocado em prática, com isso, notícias sobre o fato podem ser barradas. O ministro Gilmar Mendes declara, com base nos direitos à privacidade e à vida privada, que “se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade”.
Ainda assim, quando falamos em memória no Brasil logo lembramos daquela máxima, “o povo brasileiro tem memória curta”. A memória possui a importante função no processo histórico de uma sociedade, pois com ela, exercemos a capacidade de recordar e ter acesso às informações que possibilitam uma determinada comunidade não repetir os mesmos erros do passado.
O Brasil com seu histórico de transição de um regime ditatorial para um Estado democrático, inevitavelmente passou por processos de mudança e adaptação. Por aqui, o direito à memória foi regulamentado pela Lei nº 12.528/2011, que criou a já extinta Comissão Nacional da Verdade (CNV), designada a apurar os casos de torturas, mortes e qualquer outra violação dos direitos humanos durante o período de ditadura militar. Porém, com a extinção da CNV, a falta de responsabilização criminal pelos crimes cometidos somada à falta de reparação às vítimas e perseguidos políticos, corroboram o ditado sobre um país que esbarra na defesa do direito à memória.
9 x 1 no Supremo Tribunal Federal
Por decisão majoritária, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não é compatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento que, mesmo com o passar do tempo, seja capaz de impedir a divulgação de fatos ou dados verídicos em meios de comunicação. De acordo com a Corte, eventuais excessos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, levando sempre em consideração os parâmetros constitucionais na legislação penal e civil.
Dos oito votos que acompanharam o do relator Dias Toffoli, é válido ressaltar as ponderações da ministra Cármen Lúcia, que considerou não ser possível, do ponto de vista jurídico, uma geração negar à próxima o direito de saber a sua história. “Brasil é um país no qual a minha geração lutou pelo direito de lembrar. Quem vai saber da escravidão, da violência contra mulher, contra índios, contra gays, senão pelo relato e pela exibição de exemplos específicos para comprovar a existência da agressão, da tortura e do feminicídio?”, completou.
Além disso, a votação foi marcada pela ausência de Luís Roberto Barroso, que se declarou impedido e com o solitário voto de Edson Fachin que reconheceu o direito ao esquecimento, entretanto, entendeu que a questão deve ser analisada em cada processo julgado.