100 anos de Barbosa, o goleiro injustiçado

Foto de capa: Rafael Cruz

Por Matheus Hartmann 

Moacir Barbosa do Nascimento é considerado um dos grandes goleiros de sua geração. Barbosa, como ficou conhecido, destacou-se pela elasticidade, bom posicionamento, defesas de mão trocada, entre outras habilidades. Mas o maior destaque atribuído à sua carreira foi um chute não defendido na final da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã. O lance permanece imortalizado na memória de todo torcedor, assim como o fardo carregado por Barbosa até o final de sua vida.  

Nascido em Campinas (SP) no dia 27 de março de 1921, Barbosa completaria um século de vida esse ano. O goleiro começou sua carreira no Ypiranga-SP, no início da década de 1940, e logo se destacou, despertando o interesse de grandes clubes da época. Em 1945, transferiu-se para o Vasco da Gama, onde se tornou um dos mais importantes goleiros brasileiros, participando do chamado Expresso da Vitória, com a conquista de seis títulos cariocas e o famoso Campeonato Sul-Americano de Campeões de 1948. Já pela Seleção, conquistou uma Copa América (1949), além de ser o titular da meta brasileira na Copa de 1950. O arqueiro encerrou a carreira aos 42 anos no Campo Grande (RJ), após 27 anos jogando futebol. 

Foto: Reprodução/El País Brasil 

COPA DE 1950 

O Brasil da Copa de 1950 entrou como favorito e não desapontou no início do Mundial. Empolgou torcedores e a mídia ao vencer seus jogos aplicando goleadas expressivas na Suécia e na Espanha, pela segunda fase do torneio. Com o retrospecto positivo, a imprensa da época criou um clima de festa um pouco antes da hora e, às vésperas do jogo final, publicou fotos dos jogadores brasileiros exibindo a faixa de campeão.  

Foto: Reprodução/Amino apps

A euforia era imensa com o rolar da bola. A Seleção jogava por um empate, e o entusiasmo cresceu quando os brasileiros abriram o placar com um gol de Friaça. Mesmo após o empate uruguaio, o clima festivo ainda reinava nas arquibancadas do estádio. Mas tudo ruiu no momento da virada uruguaia com o gol de Alcides Ghiggia, aos 11 minutos do segundo tempo. O público se calou e continuou perplexo até o fim da partida, um silêncio ensurdecedor dominou o palco com mais de 200 mil pessoas, naquela tarde de 16 de julho de 1950, que decretou o Maracanaço e o início do inferno de Barbosa. 

Após essa final, o goleiro jogou apenas uma partida pela Seleção, uma vitória por 2 a 0 diante do Equador, em 1953. O último gol sofrido por Barbosa com a amarelinha foi, justamente, o chute que resumiu toda a sua carreira para os brasileiros. 

O AZAR TEM COR 

Naquele ano, Barbosa era o goleiro titular absoluto da Seleção Brasileira para a Copa do Mundo. Mas a derrota sofrida marcou e feriu profundamente o país, portanto a necessidade de apontar os culpados falou mais alto. E, imediatamente, Barbosa foi tido como o principal vilão por não ter defendido o chute, enquanto Bigode também foi apontado por ter deixado o atacante passar. Os principais alvos foram os jogadores negros da Seleção.  

A estigmatização do negro como incapaz de liderar e passar confiança e qualidade naquilo que faz foi carregada por Barbosa até a morte e foi estendida para todos os goleiros negros do país. A acusação por uma falha que custou o título mundial em solo brasileiro fez ecoar a ideia de que “goleiro negro dava azar”.  

Foto: Reprodução/Observatório da Discriminação Racial no Futebol 

Seria raso apenas olhar para o lance, analisar falhas e apontar culpados, quando, décadas após o ocorrido, podemos observar toda rotulação, infundadas ideias eugenistas – do “bem-nascido”, fortemente expostas nas primeiras décadas do século XX – para provar uma suposta superioridade branca, além da naturalização da ausência de goleiros negros, assim como de pessoas negras nos mais diversos espaços.  

Toda a estrutura racista fortalece a crença de que pessoas negras não estão permitidas a errar, pois o privilégio da mediocridade é do branco. A partir desta contribuição para a estigmatização do negro como não confiável e inseguro, deveríamos levantar simples observações no meio futebolístico, como: Quantos goleiros negros se firmaram no futebol e chegaram à Seleção Brasileira? Por que não surgiu nenhum outro capaz de transmitir confiança ao defender o gol da Seleção? Quantos foram campeões nacionais? Quantos não foram descreditados na primeira falha?  

Somente cinco décadas depois, em 2006, a Seleção Brasileira teve outro goleiro negro titular numa Copa, Dida. Além disso, somente 13 goleiros negros foram titulares em 62 conquistas do Brasileirão.  

LOURIVAL, O BARBOSINHA 

“O futebol pode ser uma arma antirracista, ao mesmo tempo em que é atravessado por uma estrutura racista”, é o que afirma o jurista e filósofo Sílvio Almeida ao contar sobre a trajetória de seu pai, o ex-goleiro Lourival, mais conhecido como Barbosinha, que defendeu o Corinthians entre 1967 e 1968.  

Foto: Reprodução/Terceiro Tempo 

A estigmatização racial é recorrente no meio futebolístico, não à toa, como nos mais diversos espaços da sociedade brasileira. O nome por trás do apelido era Lourival de Almeida Filho. A comparação surgiu por serem negros, pois ser seguro e elástico como Barbosa virou detalhe. Ao jogar numa posição onde a exigência é transmitir segurança, Lourival carregou consigo o estigma de não ser capaz de exercer uma função de confiança ou liderança.  

Atualmente, o filho do ex-goleiro é o autor do livro “Racismo Estrutural” e, nele, Sílvio amplia o raciocínio que pode ir muito além do meio esportivo. “O que o racismo produz sobre o corpo negro? Produz a ideia de que quem produz racionalidade e merece confiança são os brancos. Então, goleiros, dirigentes e treinadores são cargos de confiança, por isso há poucos negros nessas posições”, afirma. 

Lourival sempre ressaltou o medo de errar, pois, por ser negro, seria cobrado e hostilizado como Barbosa. O tempo passou e provou que ele não estava errado, porque, mesmo sendo um grande goleiro, foi acusado por alguns de “frangueiro” e de “vendido” por outros, ao levar dois gols de falta em um jogo contra o rival Palmeiras. Depois do episódio, foi rapidamente negociado. Com a camisa do Corinthians, Lourival atuou em 34 jogos e sofreu 33 gols. 

INVISÍVEL 

O futebol foi capaz de premiar Barbosa, que brilhou no Vasco entre 1945 e 1955 e numa segunda passagem de 1958 a 1962. Mas, apesar de todas as conquistas, o ex-jogador carregou o peso de uma Copa do Mundo perdida em casa. Anos mais tarde, Barbosa tentou viver tranquilamente e, na maioria das vezes, não era reconhecido por onde passava.  

Evidente que o anonimato aconteceu pela grande ausência de aparelhos televisivos, pois eram tempos de jogos narrados nas rádios e dos primeiros passos das crônicas esportivas, porém, certamente, também foi potencializado pela invisibilidade sofrida por um homem negro que, quando lembrado, era apenas para relembrar sua incapacidade de defender um chute. 

Barbosa ficou a maior parte do tempo vivendo no Rio de Janeiro antes de se mudar para Praia Grande (SP) e exorcizar de vez o Maracanaço. A curiosidade foi o ex-goleiro ter trabalhado como um anônimo no palco que o eternizou como vilão, o Maracanã. 

Quando procurado pela mídia, foi constantemente colocado na posição de explicar as razões de não ter conseguido evitar o segundo gol uruguaio. Um encontro marcante foi o relatado em uma reportagem especial da UOL esporte. A matéria retrata o encontro em 1986, ano de Copa do Mundo, da equipe do Jornal da Globo com o ex-goleiro. Na época, Barbosa trabalhava para a Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro (Suderj), no complexo do Maracanã, onde circulava, anonimamente, e cuidava das piscinas do Parque Aquático. 

A ideia da equipe da Globo era levar o ex-jogador da Seleção para dentro do estádio e rememorar todo o evento ao colocá-lo embaixo das traves, do mesmo lado onde tudo aconteceu. Porém, mesmo quase 40 anos depois, estar presente apenas com a finalidade de falar sobre o Maracanaço expôs todo o trauma carregado por Barbosa, que só realizou a entrevista em sua própria sala no Parque Aquático. 

REDENÇÃO 

“No Brasil, a pena máxima (de prisão) é de 30 anos, mas pago há 40 por um crime que não cometi”, costumava frisar Barbosa. A pena foi paga até o dia 8 de julho de 2014após a derrota por 7 a 1 do Brasil para a Alemanha na semifinal da Copa do Mundo em Belo Horizonte. Tereza Borba, a filha adotiva do ex-goleiro, declarou: “Sou brasileira, queria que o Brasil ganhasse, mas estou vendo de outra forma agora. Muita gente está dizendo que o Barbosa hoje está sendo inocentado. Acho que ele lavou a alma agora. Ele não passou essa vergonha”.  

Sobre o 7 a 1 no Mineirão e a redenção de Barbosa, assim escreveu o jornalista Diego Garcia: 

“Segundo o falecido cronista Armando Nogueira, Barbosa foi “certamente, a criatura mais injustiçada na história do futebol brasileiro. Era um goleiro magistral. Fazia milagres, desviando de mão trocada bolas envenenadas. O gol de Ghiggia, na final da Copa de 50, caiu-lhe como uma maldição. E quanto mais vejo o lance, mais o absolvo”. Pois agora, tanto Tereza quanto seu pai, onde quer que esteja, podem ficar tranquilos: a ‘maldição’ foi enterrada nesta terça. A sete palmos abaixo da terra. Em cada um dos sete gols alemães. Descanse em paz, Barbosa”. 

Foto: Reprodução/Folha Vitória 

Devido a visões racistas e preconceituosas, Moacir Barbosa do Nascimento teve uma carreira de 27 anos resumida a uma bola que não defendeu. Barbosa morreu em 7 de abril de 2000 na cidade de Praia Grande (SP), aos 79 anos. Contra todos os estigmas, foi homenageado com o título de cidadão honorário do Rio de Janeiro, em 1999. Em 2014, foi homenageado na cidade de Santos com uma estátua em arame criada pelo escultor Laércio Alves. Já em 2020, foi homenageado durante a cerimônia de inauguração do novo Centro de Treinamento do Vasco da Gama. O campo principal do CT recebeu o nome de Moacir Barbosa. 

Para o negro, não lhe é permitido uma falha sequer. Quem dera goleiros fossem intransponíveis, talvez só assim para Barbosa não ser o vilão. É, minimamente, respeitável lembrarmos suas conquistas e todo o seu valor. Seguem os títulos da grande carreira de Moacir Barbosa: 

Vasco da Gama6 vezes Campeão Carioca (1945, 47, 49, 50, 52 e 58)bicampeão do Torneio Municipal de Futebol do Rio de Janeiro (1947 e 48)Torneio Início do Campeonato Carioca (1948)Campeonato Sul-Americano de Campeões (1948)Torneio Quadrangular do Rio (1953)Torneio de Santiago do Chile (1953)Torneio Octogonal Rivadávia Corrêa Meyer (1953)Torneio Rio-São Paulo (1958). 

Santa CruzTorneio Início de Pernambuco (1956). 

Seleção BrasileiraCopa Roca (1945)Copa Rio Branco (1947 e 50)Copa América (1949). 

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