Foto de Capa: Divulgação
Por Raphael Lima
Intermediados pela gestora cultural e professora do curso de Cinema da Facha, Daniela Pfeiffer, reuniram-se nessa terça-feira (25/05) três expoentes do mercado audiovisual brasileiro para nos guiarem na construção cronológica proposta pelo tema “Panorama histórico das instituições e políticas públicas do audiovisual”. Entremeado por relatos de seus testemunhos de cidadãos e/ou atuações profissionais, estas não por acaso se cruzando tanto em ambientes acadêmicos como da gestão pública, Tunico Amancio, Vera Zaverucha e Lia Bahia conduziram a audiência por um breve relato de quase cem anos em aproximadamente duas horas.
Tunico Amancio, mestre e doutor pela USP, iniciou regressando narrativamente à Era Vargas, especificamente ao ano de 1936, quando da criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), o cinema brasileiro se formaliza, ainda assim como em vários lugares do mundo, com o intuito de servir à divulgação de avanços científicos e propaganda governamental, complementar às disciplinas escolares. Dirigido inicialmente pelo célebre Roquette Pinto, durante sua existência até 1966, de acordo com o pesquisador, foram produzidos mais de 400 filmes, entre curtas e médias.
Ao longo da década de 1950, Tunico nos contou que organizados em dois Congressos, trabalhadores do mercado cinematográfico reivindicavam por isenções de impostos sobre insumos não produzidos no Brasil, taxação sobre produções internacionais, financiamento estatal das produções, entre outras ações que dessem maior autonomia nacional na produção e distribuição das obras. Nesse cenário, em 1966 é criado o Instituto Nacional de Cinema (INC). Inúmeras produções nos 3 anos seguintes, 1966 a 1969, serão financiadas com a obrigatoriedade, e não mais opção, do investimento de 40% em produções nacionais do que se pagaria pela remessa de filmes por parte das empresas internacionais. Em recorte histórico, Tunico citou que paralelamente surgia o Jornal Nacional.
Quando de sua extinção em 1975, Tunico relatou que os patrimônios e responsabilidades do INC passaram à Empresa Brasileira de Filmes S.A. (Embrafilme), criada em 1969, sob a chancela do Regime Militar, contando com cineastas como Glauber Rocha, atuante na luta em nome da classe. Ainda que houvesse rígida censura a ser contornada, o período é apontado como o apogeu do cinema brasileiro, onde gozou-se de maior centralização das atividades, investimento estatal e independência na criação e alcance, até mesmo internacional, das películas aqui produzidas e pelas mãos de quem esteve de fato envolvido no processo. Esse fortalecimento justificou em grande parte o surgimento de vários polos de produção regionais, associações de classe e sindicatos. Sendo a Embrafilme subordinada ao MEC, em tentativa de preservá-la diante do cenário político que se configurava, o Ministério da Educação buscou inclusive investimento externo e, através de cooperação técnica com o Canadá, foi possível a criação do Centro Técnico Audiovisual (CTAv), contudo, a empresa e suas ramificações não ultrapassaram a Era Collor, consolidando um dos inúmeros ataques à cultura brasileira no período.
Em sequência temporal, a convidada Vera Zaverucha, ex-diretora da Agência Nacional do Cinema (ANCINE), apresentada como uma das maiores especialistas em política pública do audiovisual no Brasil, traçou um paralelo entre o momento atual, no qual uma pandemia limita ainda mais a viabilidade de fazer a magia acontecer, e o desaparelhamento do Estado em 1990, peça fundamental no quebra-cabeça mercadológico, causando o cessar de novos lançamentos.
No entanto, em suas palavras, com a mobilização do setor, duas frentes ganharam destaque: pleitear pela utilização dos recursos financeiros remanescentes da extinta Embrafilme, quando ainda era recolhido o percentual legal das empresas internacionais, o que foi julgado procedente, possibilitando a criação do prêmio Resgate do Cinema Brasileiro e financiamento de filmes nos mais diversos formatos; e a consolidação de legislações que ensejaram na criação de órgãos na esfera pública específicos para a regulamentação necessária, como a Lei do Audiovisual, a Lei Rouanet e, “em uma colcha de retalhos regulamentatória da Embrafilme e do Conselho Nacional de Cinema (Concine)”, a própria Ancine. Esta agência, segundo ela, teria sido resultado do movimento das lideranças da indústria cinematográfica alinhadas em prol de possibilitar ao Brasil ser capaz de acompanhar as inovações do mercado global de áudio e vídeo.
O aumento do fundo setorial do audiovisual, com a aprovação da Lei da TV Paga em 2011, trouxe o vislumbre de uma maior competitividade das empresas audiovisuais perante os grandes conglomerados e o lobby atuante em proximidade ao governo.
Em apoio aos discursos dos palestrantes anteriores, sob concordância pela mediadora, Lia Bahia, doutora em Comunicação Social, pesquisadora e professora, foi enfática em ratificar aos discentes e formandos a necessidade premente de conhecimento da legislação por todos os agentes do audiovisual. Fazendo menção a inúmeros acontecimentos positivos no período 2011 – 2018, contextualizou contemporaneamente as dificuldades enfrentadas quando um projeto de governo torna inacessível a utilização do fundo ao que se destinava.
Com a descentralização dos investimentos no setor, de 2011 a 2018, a cultura fez parte de um projeto de governo que a tinha vinculada à assistência social, em suas palavras, com características sensoriais, cidadãs e econômicas. Já o governo sucessor, no entanto, opta por um caráter empreendedor e meritocrático de cultura, ou “uma uberização”, como definiu. O acesso a investimentos estatais torna-se inacessível por pontuação inatingível àqueles que hoje em dia estariam nas universidades em cursos ligados às inúmeras atividades audiovisuais. E afirma, como já estava sendo consenso no debate, em nenhum país este mercado resiste sem aporte público.
Citando a Constituição de 1988, Lia Bahia fez a crítica de que, dentre outros prejuízos, ao cidadão brasileiro estaria sendo negado o direito ao lazer, buscando se fazer ainda mais clara quanto à necessidade de resistir, lutando legal e publicamente pela manutenção desta demanda social que é, por padrão, negligenciada em governos com projeto semelhante ao atual. Ela frisou o quanto é necessário conhecermos o conceito de cultura dentro do projeto de administração pública que estiver vigente, para assim saber como defender a existência dessa indústria de pessoas e de livre expressão artística.
Um dos desafios mais citados pelos participantes veio na forma de pergunta selecionada no chat, remetida por um dos alunos da Facha, que indagou sobre o futuro do audiovisual com o advento do streaming e sua necessária regulamentação, ao que em uníssono, citando o avanço do continente europeu no assunto, ressaltou-se que é urgente a atuação governamental perante as grandes corporações nacionais e internacionais que oferecem o serviço. Ao citar dois projetos já em andamento, um no Senado e outro na Câmara dos Deputados, a pesquisadora suplica por maior engajamento a fim de se evitar, enquanto há tempo, mais uma crise do setor audiovisual nacional, confrontado por um padrão de produção internacional da cultura, para fins econômicos e cuja competição é inviável sem apoio da política pública e recursos com essa destinação.
A íntegra da live pode ser assistida aqui: